A pandemia de Covid-19 vem afetando as pessoas de diferentes formas. O que parecia que duraria apenas alguns meses vem se estendendo por mais de ano já. Tenho escutado, no consultório, num número crescente, pessoas que estão sofrendo mais neste ano do que no ano passado. Muitas apontam que perdem o sono e sofrem com crises de ansiedade pelo fato de que as mortes e os adoecimentos têm chegado cada vez mais perto. Outras têm de lidar com o luto de algum ente querido que se foi ou com a tristeza da impossibilidade de ver aqueles que ainda estão vivos, mas que estão longe. Algumas têm-se angustiado com o aperto financeiro, com a possibilidade de perder o emprego ou de fechar o negócio próprio. Outras vivem a opressão de dias confinados em casa, da impossibilidade de sair livremente, de ver amigos, de ir ao cinema, e há aquelas que estão sofrendo com a convivência intensa e sufocante de seus relacionamentos amorosos, ou mesmo que tiveram de enfrentar uma separação em meio a este caos. Também há as que não sabem o que fazer com o incômodo do vício por redes sociais ou por séries de serviços de streaming, adquirido como tentativa de afugentar o tédio e obter algum tipo de satisfação. E existem aquelas que sofrem indignadas com o misto de incompetência e insensibilidade sociopática do governo federal na pandemia. Enfim, definitivamente não está fácil para (quase) ninguém.
Mas se há algo que também tem aparecido são possibilidades criativas, novos sentidos, ressignificações de situações que às vezes se arrastavam desde antes da Covid-19.
Um funcionário de empresa privada, com toda a dor da perda da mãe, agora está se reinventando na retomada do projeto de estudar fora. Uma mulher de meia idade, apesar das lágrimas muito sofridas com a partida repentina do pai, à espera de um leito de UTI, tem podido experimentar um modo de viver com menos rigidez, antes simbolizada pela figura paterna. Uma esposa e mãe, às vezes aos trancos e barrancos, tem criado estratégias para lidar com os filhos pequenos confinados em casa, ao mesmo tempo em que repensa o lugar que ocupa no seu casamento. Um estudante, que quase não sai do seu quarto, tem buscado o que mais pode fazer para ter algum prazer, além de conferir, de 5 em 5 minutos, as suas redes sociais no celular. Uma jovem, que antes tanto temia o chefe cruel e autoritário, criou coragem para procurar outro emprego e deixar o antigo. Uma moça, abalada após anos de uma doença crônica e de uma separação traumática, começa a encontrar alguma alegria ao se permitir conhecer um novo companheiro, mesmo que ainda tenha dias de ansiedade, dor e medo.
Ou seja, tenho entrado em contato com essas e várias outras histórias de gente que buscou ajuda na pandemia e, mesmo que não tenha encontrado a panaceia para suas dores, angústias e inquietações, tem, pouco a pouco, sido capaz de fazer algo a respeito, de se movimentar na vida (mesmo na quietude e no isolamento de suas casas), de se fazer sujeito no real (neste momento, doído) de suas vidas.
No que se refere a mim, poder ajudar as pessoas nesse processo tem sido a minha forma de passar por este momento tão difícil para nós todos, tem sido a minha fonte de alegria. Torço para que cada um encontre a sua, do jeito que for, que consiga achar o seu “gesto espontâneo” (para lembrar de Winnicott), a sua fagulha de criatividade para “modelar” essa merda em que estamos[1], com o perdão da palavra, e talvez até encontrar outros sentidos para o que já existia mesmo antes dela.
[1] A menção a “merda” me remete a Winnicott, que dizia que o impulso criativo qualquer pessoa, de qualquer idade, pode ter: “quando (...) se inclina de maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som musical” (WINNICOTT, Donald W. A criatividade e suas origens. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 100).
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