Vivemos num tempo e numa cultura em que, muitas vezes, as pessoas ignoram, apagam, “cancelam”, excluem o outro com uma facilidade ao alcance das mãos, nas diferentes plataformas digitais. Tratam o outro como um objeto descartável, ao menor sinal de que, narcisicamente, ele não serve ou contraria a imagem delas. Prescindem de verbalizar o que está em jogo (o que sentem, pensam, desejam) e simplesmente agem em silêncio, até porque, não raras vezes, sejam incapazes de nomear ou de bancar o que as move.
E isso acontece por toda parte – nos encontros amorosos, nas relações acadêmicas, de trabalho, nas amizades etc.
O rapaz ou a moça com quem se estava saindo, que antes se mostrava carinhoso(a) e engajado(a) na construção de um relacionamento afetivo, de repente, desaparece, sem dizer palavra.
O coordenador de curso, que antes se mostrava solícito a algum aluno ou professor, simplesmente os ignora quando deles recebe alguma dúvida para a qual não tenha resposta ou algum incômodo com o qual não sabe o que fazer.
O colega de trabalho ou o gestor que, estando sempre ativos, quando se trata de conseguir o que precisam do outro (informações, mais produtividade, etc.), argumentam para si mesmos que não dão conta de responder a todas as demandas e adotam uma posição passiva de silêncio, se chega alguma mensagem pedindo ajuda ou solicitando ações para as quais se sentem impotentes ou as quais não querem atender.
O amigo de rede social ou de grupo de Whatsapp, que sempre apreciou as curtidas e os comentários elogiosos recebidos em seus posts e em suas mensagens, exclui aquelas pessoas que divergiram em algo, às vezes, banal, sem sequer se posicionar para elas.
O outro (excluído, ignorado, apagado, “cancelado”) que lute, que se vire com o “vácuo” em que foi deixado, com as interrogações que tenha, com a angústia do não saber o que houve, com o desamparo da possibilidade – sempre existente – de ocupar esse lugar de dejeto nas relações.
Cada vez mais, o ato vai tomando o lugar da palavra, mesmo num mundo em que, aparentemente, a comunicação audiovisual está em toda parte, o tempo todo. O silêncio da eliminação do outro a nosso bel prazer, na palma da mão, revela o quanto os laços sociais estão se tornando, progressivamente, perversos. Ou seja, o quanto estamos colocando em prática (em ato), o que deveria ser só uma fantasia inconsciente – a de que o outro existe para nos satisfazer.
Que tipo de sociedade vamos construir com isso? A que está nascendo nesta Era Digital e não se sabe exatamente aonde vai chegar. Marcada por um narcisismo exacerbado por todo lado, mas não o que propicia um júbilo sem fim aos sujeitos, mas aquele que revela, quase que inexoravelmente, as suas fragilidades. Não é à toa, parece-me, que haja um cenário (quase?) endêmico, podemos dizer, de quadros de depressão, de ansiedade, de perturbações narcísicas de todo tipo.
A psicanálise foi fundada por Freud e permanece até hoje como uma disciplina e uma prática clínica do amor às verdades, da possibilidade de nomear algo do que fora rechaçado, expulso, cindido, negado, renegado. Enquanto o sujeito apenas age sintomaticamente, permanece alienado daquilo que o constitui ou do que deseja.
Nesse processo de colocar o outro no lugar de resto a ser excluído, se preciso for, o que fica não-dito é que, a pessoa que hoje exclui, mal se dá conta de que vai ter de se haver com a própria exclusão. Mal se dá conta de que está, até o pescoço, mergulhada nessa dinâmica em que todos passam a ocupar esse lugar de meros objetos da satisfação do outro.
Tomara que a pessoa, quando estiver também ela sentindo-se nesse lugar de resto, quando estiver com muita ansiedade depressiva ou paranóide, com muita tristeza ou com pânico etc. por conta disso, ainda possa ter alguém que a acolha, alguém que queira estabelecer um laço de amor (seja ele fraternal, profissional, erótico ou de que natureza for). Isso porque todos precisamos do outro, inclusive os que se esforçam para provar o contrário a si mesmos. Será que a nova sociedade digital que vai sendo construída vai mudar isso algum dia? Pelo mal-estar generalizado, tudo indica que não.
Imagem: Geralt (Pixabay)
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