Os precipícios, em geral, provocam medo – a simples ideia de se imaginar à beira de um pode provocar reações físicas de fuga – batimentos cardíacos acelerados, calafrio percorrendo o corpo. Não é à toa, pois, que muitos pacientes descrevem suas angústias usando a figura do precipício e o pavor de chegar perto dele. Metaforiza nossa condição de desamparo tão antiga, faz-nos tentar evitar (re)viver a “queda” descontrolada num abismo de sofrimento (quase) sem fim.
Freud, acompanhando seus inúmeros pacientes, postulou que a angústia é sinal de alerta e tem relação íntima com nossos desamparos.
Desamparos que começam no nascimento (chegada a um mundo totalmente desconhecido), passam pelas ausências da mãe (dependentes absolutos que somos dela ou de seu substituto, quando bebês), reaparecem no meio da infância, quando nos damos conta, se tudo correr bem, de que não somos tudo para a mãe e ainda sofremos o risco de termos nossa integridade física atacada, “castrada” (damo-nos conta de que somos frágeis, podemos sofrer punições, ser feridos, perder membros do nosso corpo). Finalmente, chegam os desamparos sociais – a possibilidade de sermos excluídos, de não fazermos parte do meio em que vivemos, de não sermos reconhecidos naquilo que somos, por aquilo que desejamos. O medo do escuro, os sonhos em que se está caindo (num precipício ou coisa que o valha) ou sendo perseguido, fatalmente, têm relação com essa dimensão do desamparo.
No fundo, desejaríamos usar os outros para nossa exclusiva satisfação (para nosso gozo, para usar um termo de Lacan) e que nos amassem incondicionalmente. Fantasia perversa (humana) que desnuda nosso caráter de dependência do outro (como dizia Winnicott, nunca alcançamos uma independência total). Fantasia que tenta recobrir o precipício do nosso desamparo, da nossa fragilidade, da nossa dependência do outro.
Com isso, a gente costuma desenvolver todo tipo de mecanismo (de defesa) para nos afastarmos da proximidade do precipício – “esquecemos” fatos conflitantes, racionalizamos sentimentos que temos; fixamo-nos em determinadas ideias como se fossem a coisa mais importante do mundo; preenchemos o nosso tempo com mil atividades; recuamos frente a desafios que nos parecem intransponíveis; temos enxaqueca, gastrite, e assim por diante.
A primeira vez em que tive a consciência de estar muito angustiado foi quando, na minha infância, assisti a um desenho animado em que o garoto tinha perdido a mãe e passou o desenho todo procurando por ela, até que, ao final, ela reaparece e lhe diz que se tornou “uma estrela do céu”. Ali comecei a dar-me conta de que a morte, real ou simbólica (uma separação, por exemplo), representa um verdadeiro empurrão para o precipício que tanto tentamos evitar.
Mas, de tempos em tempos, somos confrontados com ela. É o momento em que nos deparamos com a privação – que é falta real – de alguém que simbolizava algo para nós. A satisfação que tínhamos com a pessoa ou o amor que dela recebíamos não teremos mais. E isso dói na carne. É como se caíssemos mesmo no precipício. E, a depender da queda, levamos um bom tempo para que a ferida cicatrize, para que voltemos a caminhar. Mas, por outro lado, percebemos que (quase) sempre é possível continuar, que a perda não é total, por mais que ela deixe suas cicatrizes e que, muitas vezes, ainda possam doer.
Na semana passada, uma paciente emocionava-se ao falar da angústia de perder os pais, eventualmente; de cair no precipício sem rede de proteção (que os pais sempre simbolizaram para ela).
Na semana passada, a minha avó paterna morreu. A última lembrança que tenho dela foi um áudio no whatsapp, enviado há alguns dias, em que ela me dizia “Tô com saudades, meu filho. Quando você vem por aqui?...” (morava no interior do país). Vêm-me um aperto no peito e lágrimas nos olhos saber que não terei mais seu amor, que a casa que, por anos frequentei, estará vazia...
Seja como for, pouco a pouco, e com o passar dos anos, vamos aprendendo a chegar perto do precipício, a deixar de lado os mecanismos que criamos para evitá-lo a todo custo, vamos aprendendo a atravessá-lo. A angústia infantil do desamparo total provavelmente não desapareça completamente – de alguma rede de proteção a gente sempre precisa, para usar as palavras da minha paciente – mas vai ficando menos assustadora, vamos aprendendo a lidar com ela, sem que desmoronemos de vez. Transformamos a dor da privação em lembrança saudosa, em palavras, em emoção que sentimos e compartilhamos com os outros...
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REFERÊNCIAS:
FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia. In: Obras Completas, volume 17: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926 - 1929). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
WINNICOTT, Donald Woods. Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In: O ambiente e os processos de maturação: Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional, p. 79-87. Artes Médicas: Porto Alegre, 1983.
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